Jogo do Povo
Florgrade. A lei da rolha é outra num futebol que vê a floresta além das árvores
2023-09-07 16:20:00
Entrevista a Marco Soares, um dos mais experientes jogadores da Florgrade, do Campeonato de Portugal

Quando fundaram a Florgrade, uma empresa ligada ao ramo da cortiça, em 2008, os seus pensadores tinham muitas ideias na cabeça por cumprir, muitos objetivos e várias metas. Portugal e o mundo entravam, por essa altura, numa grave crise financeira e, no futebol, a Espanha fazia valer a lógica do 'tiki-taka', vencendo o Campeonato da Europa. Os tempos eram de incerteza e desafios diários, mas os 'pais' da Florgrade tinham tudo (bem) preparado e só duas palavras não entravam, e nunca entraram, na lógica de negócio: "não sei" e "não posso".

De então para cá, a Florgrade estabeleceu-se como uma empresa de referência no setor das rolhas de cortiça e, porque quiseram ver sempre mais a floresta do que simplesmente a árvore, a Florgrade deu mais tarde o seu nome de batismo a uma equipa de futebol. O Jogo do Povo foi a Rio Meão, em Cortegaça, no distrito de Aveiro, conhecer melhor a Florgrade Football Club, uma equipa que milita no Campeonato de Portugal e tem na sua génese uma indústria. Marco Soares, um dos mais experientes do plantel, fez de 'cicerone' nesta viagem pela fábrica de futebol da Florgrade.

Florgrade. A 'lei da rolha' impera

Num futebol onde se diz que cada vez mais impera a 'lei da rolha', bem se pode gabar a Florgrade do trabalho que vem desenvolvendo em prol do futebol e da indústria corticeira. Ao contrário do que a expressão popular quer dizer em sentido figurado, em Cortegaça impera uma lógica bem diferente em prol do futebol e da indústria da cortiça.

Quando a Florgrade tinha seis anos de existência, em 2014, o chamamento do futebol bateu à porta da fábrica. José Carlos Ferreira, o dono e que tinha jogado futebol, decidiu criar uma equipa para, com os seus colaboradores, disputar ligas empresariais de futebol de sete.

As coisas começaram a correr de tal forma bem que as conquistas sucederam-se e o projeto foi ficando cada vez mais sério até ao ano de 2019 onde os donos da Florgrade perceberam que deveriam dar o passo seguinte e criar definitivamente uma equipa de futebol de 11, com todos os riscos e desafios inerentes.

Marco Soares, um dos mais reputados jogadores da Florgrade nos dias de hoje, é um caminhante já com muito estádio percorrido e não esconde que encontrou em Rio Meão o clube ideal para esta fase da sua carreira, carregado de "bons exemplos".

"No clube temos grandes exemplos como são o caso do José Carlos e do Hélder Castro que são duas pessoas com uma vontade, querer e ambição muito grande e que passam isso para o resto do grupo", começou por contar o ex-internacional por Cabo Verde, realçando que na Florgrade assume sem problema algum o papel de 'pai' no balneário para muitos dos jogadores.

"Tento sempre passar o melhor exemplo possível de um profissional de futebol para que, principalmente os mais jovens, adquiram isso e estejam preparados para a carreira que vão ter pela frente, que vai ser de altos e baixos e têm de ter um equilíbrio e uma constância muito grande para nos melhores momentos não se envaidecerem e para que nos piores momentos também não se sintam os piores do mundo e desistam do sonho", explicou Marco Soares.

O plantel da Florgrade, que compete na Série B do Campeonato de Portugal, tem vários jogadores que se vão destacando. Marco Soares entende que tem vários colegas que podem triunfar no futebol mas há um nome que este coloca na primeira fila por conta do potencial que lhe reconhece.

"Colocava o Gonçalo Nunes, um jogador com um potencial enorme e que acredito que pode chegar a patamares superiores", vaticinou Marco Soares, admitindo que, por vezes, o jogador até merecia uns 'castigos'.

"De costas para a parede por cada vez que para a reclamar falta e perde o foco no treino e no jogo". Palavra de Marco Soares, 53 vezes internacional pelos 'tubarões azuis' de Cabo Verde.

A Seleção, como jogador, pertence ao passado e o presente faz-se em Rio Meão ao serviço da Florgrade, um clube que compete num campeonato "muito competitivo" e que acaba cedo.

"É um campeonato muito competitivo onde tem um misto de jogadores experientes com jogadores mais novos que têm neste campeonato uma oportunidade de se mostrarem. Temos visto vários casos de jogadores que passaram pelo Campeonato de Portugal e hoje estão em grandes patamare", salientou Marco Soares, tendo a certeza de que o Campeonato de Portugal "serviu de crescimento e deu-lhes uma maior visibilidade", vincou, lamentando que o calendário faça com que grande parte das equipas terminem a época "cedo".

"Só é pena as equipas que não participam na fase de subida acabarem muito cedo o campeonato e ficarem muito tempo sem competir", lamentou o experiente jogador, em declarações ao Jogo do Povo, no Bancada, que explicou que gosta de chegar sempre aos treinos de forma antecipada.

'Horinha e meia' antes do treino está lá o dono das camisolas de Figo e CR7

"Normalmente, vou uma 1h30 antes do treino para fazer o meu trabalho no ginásio de agilidade e mobilidade, depois temos o treino e depois do treino passo para a fase de recuperação na banheira de gelo", contou Marco Soares, dizendo que essa rotina é "sagrada".

"Para mim, todos os dias sete minutos no final do treino", explicou Marco Soares, ele que guarda muitas amizades e alguns brindes dos anos que leva no futebol.

"Todas as camisolas que eu tenho guardadas são especiais porque são de amigos que fiz ao longo do futebol. Mas tenho duas em especial de dois Bolas de Ouro (Luís figo e Cristiano Ronaldo)", assegurou o jogador da Florgrade, respondendo ao Jogo do Povo como conseguiu essas 'relíquias'.

"Do Luís Figo foi-me oferecida pelo meu sogro, de um jogo que o Luis Figo fez a favor da Unicef. A do Cristiano Ronaldo foi na minha estreia na Seleção de Cabo Verde contra Portugal. Fiquei com a camisola dele."

"Perdi praticamente a minha infância"

No futebol como na indústria, o trabalho obriga muitas vezes a sacrifícios, esforços e dedicação. Marco Soares recorda que para ser futebolista teve de enfrentar muita coisa, sobretudo as lesões.

"O mais difícil até aqui foram as duas lesões graves que tive, estar em vários momentos longe da família e perder datas importantes das minhas filhas", admitiu Marco Soares, em declarações ao Bancada, vendo agora quase aos 40 anos que muita coisa ficou pelo caminho por conta do sonho da bola.

"Para ser profissional de futebol perdi praticamente a minha infância, porque quando fui jogar para o Barreirense, com 13 anos, eu ia para a escola de manhã e depois das aulas ia diretamente para o treino, que era noutra cidade. Só chegava a casa praticamente às 22/23 horas da noite", contou Marco Soares, recordando que para ganhar o futebol, as amizades foram perdendo alguns momentos importantes.

"Eram poucas as vezes que podia estar com os meus amigos de infância, mas valeu a pena todo esse esforço e essa dedicação porque consegui ser profissional de futebol, mas para isso tive de ter um foco muito grande desde muito cedo porque as distrações contrárias a quem quer ser jogador de futebol profissional são imensas", disse o jogador em jeito de conselho aos mais novos.

Cabo Verde no coração e à mesa

O sonho da bola para Marco Soares passou por muitos relvados dentro e fora de Portugal. E de cada vez que entra em campo leva a bandeira de Cabo Verde no coração.

O ex-internacional pelos 'tubarões azuis' acompanha com muito carinho e atenção a sua seleção e faz imperar os costumes do país também à mesa. Por isso, sem surpresa, o Jogo do Povo convidou Marco Soares a explicar quem do futebol gostaria de convidar para uma cachupa, um prato tradicional de Cabo Verde.

"José Mourinho e Jorge Jesus, porque são dois treinadores por quem eu gostava de ser treinado. São duas pessoas que percebem muito de futebol e que tenho a certeza que durante uma cachupada conseguia aprender algo com eles sobre futebol", justificou Marco Soares, ele que está grato a algumas pessoas que o ajudaram a chegar até aqui.

"O senhor Luís e o senhor Méquito, que nos meus primeiros passos no futebol federado me mostraram o caminho", contou Marco Soares, dizendo que lhes deve a eles o facto de ter uma ciclo de jogador "bem sucedido e não andar nos caminhos errados".

Mas na vida de Marco Soares há mais gente do futebol que o marcou. "O Rui Fonseca, que foi o treinador que me foi buscar ao bairro, no Vale da Amoreira, e me levou para o Barreirense e criou todas as condições para eu ser tratado de forma especial e profissional com apenas 13 anos".

No mundo da bola há sempre mãos que puxam e empurram para a frente, fazendo andar as pernas pelo caminho e Marco Soares entende que Rui Fonseca foi, nos primeiros anos de jogador da bola de Marco, quem o fez caminhar.

"Ele despertou em mim o desejo de ser profissional, depois tenho de destacar o mister Vasques, que foi o meu treinador na transição de júnior para sénior e que me fez acreditar que eu podia mesmo ser profissional de futebol, mas o meu destaque para eles vai acima de tudo pela forma como me fizeram crescer como ser humano."

"Dauto Fáquira foi a pessoa mais importante na minha carreira"

Quem anda no futebol sabe também que há gente de pele mais ou menos enrugada mas cada uma com a sua importância. Por atos, por palavras ou até mesmo por omissões. Há quem gente que marca a vida fora dos relvados e dentro deles. Para Marco Soares, pensar no futebol da sua vida sem falar de Daúto Faquirá não seria justo.

"O mister Dauto Fáquira foi a pessoa mais importante na minha carreira profissional pela forma como acreditou e apostou em mim", afirmou Marco Soares, admitindo que não seria justo esquecer-se de outros nomes como "o Marco Bicho e o Rui Martins (Jacaré) que foram as minhas referências desde cedo porque admirava a forma como jogavam e com quem tive o prazer de partilhar o balneário nos meus primeiros anos de sénior", recordou Marco Soares, lembrando que estes "faziam de tudo" para o "proteger" e para "que nada faltasse".

"O espião do treino era um senhor das obras"

Logicamente que a carreira de Marco Soares tem gravados muitos momentos especiais, conversas, vivências e experiências. Marco Soares já ganhou muitas vezes, já perdeu e empatou. No fundo, o futebol ensina que a vida pode ser tudo, umas vezes, e nada, em outras. Mas acima de tudo há amizades que ficam e alguns momentos engraçados, como um treino que ficou recordado para sempre no Olhanense sob o comando técnico de Álvaro Magalhães.

"Na parte final do treino íamos fazer bolas paradas e, de repente, o mister manda parar e chama os jogadores para junto dele. Nessa altura, estavam a ser feitas obras na parte de fora do estádio e estavam a construir uns prédios altos. Ou seja, dava para ver para dentro do campo. O mister Álvaro Magalhaes vira-se para nós e diz 'não olhem agora mas ali em cima daquele prédio está um espião'", contou Marco Soares, entre sorrisos.

Ao Jogo do Povo, o médio confirmou que, afinal, o dito 'espião' era apenas um trabalhador das obras numa pausa para o lanche. "O mister Álvaro Magalhães mandou alterar as bolas paradas de quem batia e as posições dos jogadores para confundir o espião que era apenas o senhor que trabalhava nas obras a fazer uma pausa para comer. Ele apenas parou para nos observar", recordou Marco Soares nesta longa entrevista onde revisitou o passado, o presente e o futuro de uma carreira que se faz de dedicação à Florgrade por estes tempos.

Marco Soares leva mais anos de vida no futebol do que o clube que representa mas, efetivamente, ambos ainda têm muito para dar ao futebol porque, como gosta de referir a Florgrade nas suas redes sociais "Nascemos da cortiça. Cultivamos a cortiça. Vivemos da cortiça. Trabalhamos a cortiça. Amamos a cortiça. Jogamos pela cortiça".